A moralidade do sync

Publicado em 02/07/2012 - Por

Qual seria o princípio ético do uso da sincronia automática, seja qual for o equipamento que a disponibilize? Existe, na verdade, tal filosofia? Em uma das minhas reflexões íntimas a respeito da discotecagem, me questionei. Num olhar simples, parece claro a tradicional divisão de pensamentos, onde um execra seu uso enquanto o outro encontra nele grandes valores. Esse tipo de debate é tão comum no universo da discotecagem quanto falar sobre futebol, novelas, reality shows, nas ruas. 

Percebi rapidamente que, de fato e mesmo que inconscientemente por parte dos profissionais que formam a categoria, há um raciocínio a respeito por parte tanto de DJs quanto do público apreciador sobre o tal do sync, nome usado para falar sobre a sincronia automática, provindo do termo em inglês.

Em uma das minhas aulas na Yellow, no curso de Performance DJ, a respeito de CD players, aonde eu comentava sobre alguns modelos de equipamentos, apresentava o CDJ 350, da Pioneer e, logo, veio a tona o tradicional debate. Uma das funcionalidades do equipamento é o BPM Lock. Este sistema, resumidamente, iguala de forma simples a velocidade entre as faixas discotecadas, dispensando o tradicional método de regulagem, no qual o DJ precisa realizar a tarefa usando apenas a sensibilidade de seu ouvido. Um dos meus alunos me perguntou. 

– Pra que serve este troço, então?


Antes de se entrar na seara moral, é importante levantar um apanhado histórico a respeito desta tecnologia.

A sincronia automática em discotecagem se difundiu fortemente através de softwares para DJing amadores, em especial o Virtual DJ, da Atomix. Neles era possível usar a regulagem de velocidade de maneira simples, através do método de BPM Matching. O fato de este recurso facilitar e, de certa forma, reduzir a importância de um dos alicerces do DJing clássico, o ajuste do pitch, disparou preconceito por parte do universo profissional desta carreira: aquele que não dominava o pitch “de ouvido” não poderia ser considerado um DJ verdadeiro. Por conta disso, os programas para discotecagem profissional dispensavam esta tecnologia em seu repertório de recursos, valorizando o uso da técnica convencional de ajuste de velocidade, baseada em equipamentos habituais como toca-discos e CD players.

Com a popularização do DJing e o aprimoramento técnico dos programas para discotecagem profissional – por conta do nascimento da DJ Performance e a necessidade clássica de novos clientes – , a sincronia automática ganhou inúmeras formas de utilização e tornou-se mais comum. Porém, a aplicação mais usada do princípio ainda se focava no uso simples: a regulagem da velocidade entre faixas e suas sincronizações para a mixagem básica. A desvalorização do profissional que atuava com este recurso seguiu latente, e os programas para discotecagem continuaram causando insegurança naqueles que queriam migrar dos métodos tradicionais para o mundo virtual.

Os toca-discos e os CD players, neste sentido, propunham o contrário do que a sincronia automática oferecia: a valorização da técnica clássica de ajuste de velocidade, bem como a discotecagem convencional. O DJ verdadeiro seria aquele capaz de regular o pitch através de sua sensibilidade e sem depender de qualquer referência eletrônica. Este pseudo-poder ofereceria a ele gabarito e legitimidade ao se rotular DJ. Por conta disso, por anos, houve grande separação entre os DJs convencionais e os de softwares. Nesta linha, o público também escolheu os artistas do método clássico como os melhores, e relegou os que usavam computadores a um segundo plano. Até hoje, tal pensamento ainda permeia o mundo da discotecagem. 

Entretanto, o mercado, observando a popularização da sincronia automática especialmente por conta de DJs amadores, deu de três dedos no debate, estendeu a ideia para várias áreas buscando abraçar mais clientes e atingiu os irmãos mais próximos dos softwares de discotecagem: os CD players. Nisso, temos o CDJ 350 e o BPM Lock.

Finalmente, chegamos à questão moral do sync.

 
Richie Hawtin é um dos mais notáveis usuários assumidos do sync.

Primeiramente, devemos analisar o princípio filosófico que rege o uso da sincronia automática. Sim, ele existe.

Com o desenvolvimento dos softwares de discotecagem, o sync ganhou nova perspectiva. Muito mais do que realizar uma mixagem básica, a sincronia automática propõe grandes interações com itens como cue points (pontos memorizados nas faixas para acesso rápido durante suas execuções), loops (repetições de trechos musicais ou da própria música), samples (amostras e fragmentos de áudio), além da conexão simultânea com outros programas de performance e discotecagem, propondo criatividade e individualidade à apresentação

Nesta esfera, relegar o uso da sincronia automática à simples regulagem de velocidade entre faixas reduz a capacidade criativa do recurso e do próprio DJ. Tecnicamente, não é errado a usar desta forma, afinal ela também tem esta função. Moralmente, seu uso com este intuito é discutível e questionável. 

Pode parecer excesso de acidez, mas é a reserva moral de cada um, me parece, o que encaminha os artistas a usar o sync para criar apresentações épicas ou para realizar mixagens simples, considerando o ambiente da música eletrônica. A busca pelo ato completo, a apresentação cheia de inventividade e lucidez artística, é o que move muitos de nós às raves e clubs. O uso da sincronia automática na mixagem básica, em minha ótica, neste sentido, diminuiria, no mínimo, o aspecto visual da apresentação, uma vez que dispensa a regulagem do pitch e o uso da jogwheel, fatores centrais da discotecagem convencional e que tornaram o DJing uma das artes mais valorizadas atualmente. Quando se passa a usar o recurso buscando diferenciais e criatividade, além do ajuste convencional de velocidade, se cresce profissionalmente e artisticamente, retirando o artista do limbo preguiçoso e lugar comum que a mixagem básica com a utilização do sync pode propor. 

Se levarmos em conta a questão musical, por outro lado, poderíamos cair em outra esfera, que é apenas a do som e que independe do método usado para mixagem. Considerando a maioria do público apreciador, que não se focaria na parte técnica, usar ou não a sincronia automática para realizar a discotecagem seria o menos importante: o que valeria é apresentar um bom set, capaz de entreter e leva-los ao êxtase. 

Todavia, ocorre hoje, mais do que nunca, a valorização intensa tanto do lado musical quanto do visual e criativo nas apresentações, de forma que a demonstração de exercício técnico durante a performance pode tornar o set ainda mais interessante. Se antigamente tínhamos grande preconceito a respeito do uso de softwares e controladores no palco, hoje há grande interesse do público nestes pontos. Ou seja, focar-se apenas na sincronia automática em seus atributos básicos durante a apresentação pode reduzir as chances de se ter um produto realmente diferente e atrativo.  


CDJ-100, que não tem nem indicação de BPM

Essencialmente, os CD players surgiram com a intenção de proporcionar a discotecagem clássica com CDs, obviamente. Essa tem sido sua proposta durante toda sua vida e é isso que atrai muitos a o usar em detrimento dos softwares e controladores. Isso é algo que vivencio todos os dias durante minhas aulas na Yellow. Sabe-se, ainda, que há nos CD players métodos para burlar, de forma capenga, o ajuste de velocidade, e que são discutíveis e, ainda assim, bastante utilizados na mixagem básica. No momento em que o CD player dispensa aquilo que ao mesmo tempo visa valorizar – a mixagem básica através do ajuste clássico de velocidade – perde-se o sentido do próprio equipamento. Tanto eu quanto os próprios usuários de CD players entendem desta forma, e mesmo aqueles que possuem o equipamento evitam usar o tal BPM Lock no CDJ 350, por exemplo.

Ao responder o aluno, cheguei à resposta que me inspirou a escrever sobre tudo isso.

Não é errado usar a sincronia automática em mixagens básicas, sob o viés técnico. Concordo que, se houver resposta positiva da pista em relação ao set, qualquer forma de sincronização pode ser valida. Sei que a realização da sincronia automática depende de uma série de regulagens inclusive, especialmente em softwares, e que isso oferece algum valor ao trabalho do DJ que atua com esta prática.

Mas eu pertenço ao grupo daqueles que acreditam que sempre podemos fazer mais; podemos sempre fazer a diferença. Penso que somos capazes de tornar o que produzimos algo definitivamente diferente e único. À medida que há a entrega sincera e íntegra àquilo que nos dedicamos, a busca pela excelência é algo obvio e incessante. E, neste sentido, este DJ – tenho convicção disso – não se contentará apenas com o automático que o equipamento proporciona: ele saberá usar de maneira total e grandiosa a facilidade que encontrar.

Acredito que os alunos entenderam a mensagem, ao final.

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